Um luxo, um produto trivial, uma raridade: os usos do gelo ao longo do tempo
Decorreram três séculos entre o início da laboração da Real Fábrica de Gelo e a reabertura ao público do núcleo museológico dedicado a este complexo pré-industrial, agora Monumento Nacional. Entre o século XVIII e o século XXI, assistiu-se em Portugal a uma alteração radical nos hábitos de consumo, em linha com o que aconteceu noutras partes do mundo ocidental.
Embora seja conhecido o uso do gelo desde a Antiguidade, a verdade é que se tratava de um bem precioso, ao alcance de poucos. Antes da invenção do frigorífico e dos sistemas elétricos de refrigeração, o gelo era raro e de conservação complexa: podia ser obtido diretamente a partir da neve natural, ou através de um processo de produção como o que se usava na Real Fábrica de Gelo, aproveitando águas naturais que solidificavam durante a noite, com o frio da serra.
A partir do século XVII, há uma crescente valorização do gelo na Europa, fosse para refrescos, bebidas nevadas e sorvetes, fosse para uso medicinal. Em Portugal, durante mais de cem anos, o gelo foi quase exclusivo da Casa Real e do Hospital de Todos os Santos, em Lisboa. Aliás, reconhecendo a dificuldade de conservação do gelo no período estival – quando esta preciosidade chegava ao Terreiro do Paço, após uma longa viagem –, D. José I emitiu um alvará régio que dava prioridade ao transporte do gelo em caso de excesso de tráfego fluvial na margem do Tejo. Assim que aportava, o gelo era enviado para abastecer a Corte, depois para alguns cafés chiques e, por fim, para o hospital.
Com a invenção de sistemas mecânicos de refrigeração e do frigorífico, que muito lentamente se foi tornando comum nas casas portuguesas, o uso do gelo generalizou-se, e este produto deixou de ser privilégio de apenas alguns. Começou aqui o declínio da Real Fábrica de Gelo, assim espelhando um processo social altamente transformador no consumo do que chegou a designar-se como «ouro branco». O gelo podia agora ser produzido rapidamente, e passou a fazer parte do quotidiano.
A história do gelo, contudo, não termina aqui. Se começou por ser um bem precioso e depois se tornou num produto de uso comum, o futuro traz grandes incertezas e indica que talvez o gelo regresse à sua condição de raridade: a escassez de água no planeta e o aquecimento global são já notórios na Serra de Montejunto. Hoje em dia, mesmo que não existissem frigoríficos e congeladores, a Real Fábrica de Gelo já não poderia existir: há um dos 44 tanques de congelação que ainda retém a água das chuvas; mas a última vez que essa água congelou foi antes de 2010. Um alerta que não deve ser ignorado.
França, fábrica Baccarat, modelo Gladstone
Cristal transparente incolor, lapidado e gravado
Monograma de D. Maria Pia, MP, encimado por coroa, gravado e dourado
Palácio Nacional de Sintra
Inv. PNS4415
© PSML | Foto: e.m.i.g.u.s, 2018
(1908, fotografia de Joshua Benoliel).