Monumento Nacional

A Real Fábrica de Gelo da Serra de Montejunto acompanhou uma transformação radical nos hábitos de consumo em Portugal, e também na transfiguração industrial do país a partir de meados do século XIX.

Esta estrutura pré-industrial foi construída para suprir as dificuldades de abastecimento regular de gelo à Casa Real e à cidade de Lisboa. Constitui-se, juntamente com o complexo do Coentral, na Serra da Lousã, como alternativa ao processo utilizado para obtenção de gelo nos séculos XVII e XVIII, que se baseava na recolha da neve acumulada nos poços da Serra da Estrela.

Construída na primeira metade do século XVIII, a Real Fábrica de Gelo da Serra de Montejunto foi adquirida e reedificada em 1782 pelo neveiro-mor da Casa Real Julião Pereira de Castro. Dedicada ao fabrico de gelo natural – uma preciosidade à época –, manteve-se em atividade até ao final do século XIX.

Esta estrutura pré-industrial distribui-se por três áreas distintas:


O sistema de engenho para captação e armazenamento de água: poços, nora e depósito.


O conjunto dos tanques rasos de congelação, sequencialmente organizados, de modo que a água circulasse entre eles e congelasse durante a noite.


O edifício para produção, conservação e distribuição, onde o gelo era compactado, cortado, guardado nos silos e, finalmente, expedido para Lisboa, abastecendo a Casa Real, os melhores cafés e ainda o hospital.

O processo de fabrico de gelo natural dependia do domínio de técnicas associadas à hidráulica e das condições climatéricas da Serra de Montejunto. Nos dias mais frios, a concentração da água nos tanques e as baixas temperaturas permitiam a formação de placas de gelo, posteriormente armazenadas nos silos, onde permaneciam até serem cortadas e acondicionadas. Uma vez que Montejunto fica apenas a 40 quilómetros de Lisboa, era possível transportar o gelo ainda em blocos até à capital, e assim abastecer a corte, alguns cafés e o Hospital de Todos os Santos.

A Real Fábrica de Gelo de Montejunto é um complexo pré-industrial único em Portugal e bastante singular a nível internacional. Foi classificado como Monumento Nacional em 1997.

Uma cronologia do gelo
As datas da produção e do comércio do gelo

1218: Os primeiros monges dominicanos reúnem-se em torno da Capela de Nossa Senhora das Neves, para aí instituírem um convento da Ordem, de carácter eremítico. Anos mais tarde, devido ao clima e ao lugar ermo em que se encontrava, a Ordem Dominicana é transferida para Santarém, ficando este convento com um propósito de oração, repouso, pregação e penitencia.

1619: Cristovão Soares, secretário de Estado, recomenda que haja em Lisboa mantimentos em abundância, por ocasião da chegada de Filipe II de Portugal.

1619: Contrato de quatro cargas de neve (24 arrobas) ao neveiro Paulo Domingues, para abastecer a Casa Real, dada a visita de Filipe II a Portugal. A neve vende-se no Terreiro do Paço e à porta de Santa Catarina.

1623: Marco António Cacilano ou Cassiliano, refrescador da corte de Castela, faz um contrato para fornecer Portugal, nos lugares marítimos do país, com privilégio durante 15 anos, a 10 réis o arrátel.

1699: Petição do italiano João Baptista Rossati, que requeria fazer uma fábrica e artifício para a conservação do gelo durante o verão, pedindo privilégio para exercer esse negócio entre 1 de Janeiro de 1700 e 1 de Janeiro de 1720, com monopólio deste fabrico, com exceção da neve da Serra da Estrela.

1700: A consulta da petição foi favorável a João Baptista Rossati, e é passado alvará para a fundação da fábrica de gelo pelo artifício ou técnica que ele pretendia desenvolver, pelo tempo de vinte anos.

1717: É criado o ofício de neveiro da Casa Real, no qual foi provido Eugénio da Cunha, filho de Domingos da Cunha, por 50 réis o arrátel.

1724: Segundo neveiro da Casa Real, sendo provido António Almeida Lobrão, sem moradia nem ordenado, mas com todas as demais regalias dos oficiais da corte.

1726: Portaria do secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real, enviando resolução régia de 15 de Dezembro, em que manda ao almoxarife dos Paços da Ribeira que pague ao tesoureiro do senado da câmara das duas cidades de Lisboa (oriental e ocidental) 32$000 réis em cada ano, pelo aluguer da loja que o «dito senhor foi mandado tomar ao mesmo senado debaixo das varandas do Terreiro do Paço, para ucharia da neve».

1730-1733: Crise de fornecimento de neve na cidade de Lisboa.

1741: João Rose e Pedro Francalanza investem 40 000 ou 45 000 cruzados na construção de uma fábrica de neve na Serra de Montejunto. Os dois fabricantes de neve associam-se a um neveiro da Casa Real, o francês Trofimo Paillete, então ao serviço de D. João V, para viabilizar o investimento da construção e organização da fábrica.

1741: Trofimo Paillete pede privilégio exclusivo por vinte anos para abastecer a cidade de Lisboa, fornecendo a neve para a Casa Real por 30 réis o arrátel e vendendo-a ao público por 40 réis. Fala em construção de armazéns e no seguimento de transportes. Solicita ainda, dado o baixo preço da neve, isenção de toda a que importasse, durante os mesmos vinte anos, e isenção pela venda, de quaisquer direitos, sizas, décimas, portagens e maneios.

1742: Resolução régia de concessão de privilégio a Trofimo Pailleta para fornecimento de neve na Serra da Estrela, na forma do costume, para que não falte na cidade, devendo vendê-la a 40 réis o arrátel.

1744: Burla de Trofimo Paillete aos seus sócios, João Rose e Pedro Francalanza, estrangeiros e homens de negócio da praça de Lisboa. Paillete foge do país.

1748: Requerimento de João Rose e Pedro Francalanza, informando sobre o capital investido na fábrica da Serra de Montejunto, no valor de 16 000$000 réis (40 000 cruzados), obras que exclusivamente lhes pertenciam, para fornecimento de neve ao paço real com abundância e prontidão.

1748: Carlos Mardel (1696-1763), em visita à Serra de Montejunto para proceder a diligência particular a respeito do convento dominicano da serra, examinou a fábrica de neve de João Rose Pedro Francalanza.

1748: Relatório de Carlos Mardel a propósito da fábrica de neve da Serra de Montejunto, feito a pedido de João Rose e Pedro Francalanza. Refere que a fábrica requeria ser aumentada e as obras iam continuando, tendo empregue mais capital e ali trabalhando 80 a 100 homens na sua construção.

1750: Requerimento de D. Catarina Ricart para ter, na cidade de Lisboa, casas de neve todo o ano a 30 réis o arrátel, dando de graça uma arroba, cada dia, ao Hospital de Todos os Santos, pedindo privilégio do contrato da neve por dez anos.

1750: Consulta da Câmara de Lisboa ao rei, para o negócio da neve, envolvendo os negociantes João Rose, Pedro Francalanza e D. Catarina Ricart. A Câmara informa dever aceitar-se o contrato de neve com os dois primeiros, que são então eleitos, por terem tanques de gelo e poços na Serra de Montejunto e da Estrela, e mais experiência do que D. Catarina Ricart. A resolução régia, no entanto, seria favorável a D. Catarina Ricart.

1753: Notícia, não documentada, da concessão de privilégios semelhantes àqueles que tinha D. Catarina Ricart, dados pelo rei a Julião Pereira de Castro.

1757: Alvará do rei D. José I conferindo mercê de neveiro da Casa Real a Julião Pereira de Castro, natural de Santo André de Lourido, termo de Salvaterra do Miño, província de Pontevedra, Galiza.

1782: Ano em que a Real Fábrica de Gelo de Montejunto conheceu uma ampliação, reedificação e novo vigor industrial, pela mão do empresário Julião Pereira de Castro, que a adquirira entretanto.

1782: Anúncio publicitário da Casa da Neve publicado na Gazeta de Lisboa. Certos autores dizem que era propriedade de Julião Pereira de Castro.

1797: Nasce o neto de Julião Pereira de Castro, Martinho Bartolomeu Rodrigues.

1810: Martinho Rodrigues de Carvalho, genro de Julião Pereira de Castro, era o contratador de neve do Coentral para Lisboa e a Casa Real. A transmissão do contrato fez-se dentro da família. Pereira de Castro terá morrido por esta altura.

1850: Invenção do frigorífico, que determinou a perda de relevância do comércio do gelo e o declínio da laboração da fábrica da neve, que, contudo, apenas fechou portas definitivamente décadas mais tarde.

1881: Morre Martinho Bartolomeu Rodrigues, neto de Julião Pereira de Castro. Por testamento, Augusto Frederico Rodrigues Lima é o novo proprietário da fábrica de neve de Montejunto.

1885: Encerramento da fábrica de neve da Serra de Montejunto.

1930: Decreto de expropriação por utilidade pública da Quinta da Serra.

1956: Construção de instalações militares que destroem parte das ruínas abandonadas da fábrica de neve, nomeadamente um depósito e um conjunto de tanques de congelação.

1985: Ofício da Associação de Estudo e Defesa do Património Cultural e Natural de Alenquer pede atenção para as ruínas da fábrica de neve de Montejunto.

1986: A Comissão Instaladora da Associação de Defesa do Património do Cadaval pede a classificação do imóvel. Começam os primeiros trabalhos destinados à recuperação da fábrica de neve.

1997: Classificação das ruínas da Quinta da Serra, designadas como Real Fábrica de Gelo, como Monumento Nacional.