A Real Fábrica de Gelo: cadeia de produção, conservação e distribuição


Fazer gelo natural
Foi em Montejunto que começou a produzir-se gelo através da congelação da água – ao contrário do que acontecia, por exemplo, na Serra da Estrela, onde se recolhia a neve com vista ao seu uso direto. Para tal, edificou-se a Real Fábrica de Gelo, que possuía um engenho de extração de águas – poços, nora e reservatório – e também um sofisticado sistema de congelação em cascata, ao longo de dezenas de tanques de pouca profundidade. O clima severo do Inverno na serra encarregava-se do resto.

Guardar o gelo durante o Inverno
O complexo pré-industrial completava-se com o edifício dos silos, ou poços, que serviam para armazenar o gelo recolhido dos tanques, acomodando-o no fundo desses mesmos poços, para evitar o derretimento. Já no fim da Primavera, era igualmente neste edifício que se preparava o gelo para consumo nos dias quentes: aqui se compactavam, cortavam e embrulhavam em palha e serapilheira os blocos de gelo, que assim seguiam para Lisboa. 
 
Refrescar a capital
O gelo era então transportado por burros que desciam a Serra de Montejunto, rumo ao Tejo, onde a viagem prosseguia de barco até Lisboa: todo o trajeto demorava mais de doze horas. O destino principal do gelo era a Casa Real, embora houvesse uma parte reservada para uso medicinal no Hospital de Todos os Santos, e ainda outra parte que era vendida aos proprietários dos cafés mais sofisticados da capital: por exemplo, o Martinho da Arcada. Neste percurso, desempenhavam um papel preponderante os neveiros, isto é, os comerciantes do gelo.
Circuito de expedição e transporte do gelo natural, desde a Serra de Montejunto até Lisboa.

Circuito de expedição e transporte do gelo natural, desde a Serra de Montejunto até Lisboa.

Recriação do modo de funcionamento da Fábrica do Gelo entre os séculos XVIII e XIX (2019).

Recriação do modo de funcionamento da Fábrica do Gelo entre os séculos XVIII e XIX (2019).

Porto de Vila Nova da Rainha (s/d).

Porto de Vila Nova da Rainha (s/d).

Os neveiros
Terá sido o rei Filipe II de Portugal que importou esta prática já habitual na corte espanhola: solicitou que se produzisse gelo na Serra da Estrela, trazido para Lisboa no verão, de modo que a corte desfrutasse de bebidas frescas e sorvetes. Foi assim criado o cargo de neveiro-mor, responsável pelo fornecimento diário de neve ao rei entre 1 de maio e 31 de Outubro. Os neveiros passaram a ser o rosto visível da produção e do comércio do gelo. Geralmente fidalgos, obtinham mercês da Casa Real na condução da neve, as quais estipulavam a obrigação de fornecer este bem durante todo o ano, e estabeleciam o preço a praticar. Em troca, os neveiros beneficiavam de apoio no transporte do gelo.

O negócio da neve era de grande importância à época. Diz-se que, certa vez, o rei se queixou de incumprimento no fornecimento da neve, tendo o neveiro-mor alegado dificuldades de transporte. O monarca ordenou então que se fornecesse ao neveiro-mor tudo o que precisasse – burros, cavalos, carroças –, para que ele cumprisse a sua obrigação contratual. Num outro episódio, o proprietário do famoso Café Marrare, situado na Rua Garrett, em Lisboa, reclamou que Martinho das Neves não lhe fornecia gelo em quantidade suficiente. Foi necessária a intervenção do próprio Marquês de Pombal, que se empenhou pessoalmente na resolução da disputa.

 

Julião Pereira de Castro
Julião Pereira de Castro foi neveiro-mor da Casa Real durante décadas. Deteve o monopólio do comércio de gelo em Portugal, enquanto proprietário dos poços da Serra de Montejunto e do Coentral. Foi o responsável pela reedificação e modernização da Real Fábrica de Gelo, e o grande dinamizador da distribuição de gelo natural na capital do reino: diz-se inclusive que a ele pertencia a Casa da Neve, no Terreiro do Paço, em Lisboa, que recebia o gelo vindo de Montejunto e fornecia bebidas frescas e gelados à corte; mais tarde, a Casa da Neve foi transformada no icónico Café Martinho da Arcada. A fábrica manteve-se na mesma família durante quase 150 anos.

Publicidade à «neve», já então muito apreciada na capital. Anúncio de fachada, na Confeitaria Pomona, Baixa de Lisboa (século XIX).

Publicidade à «neve», já então muito apreciada na capital. Anúncio de fachada, na Confeitaria Pomona, Baixa de Lisboa (século XIX).

Veículo de distribuição e venda de gelo, nas ruas de Lisboa (cerca de 1900, fotografia de Ferreira da Cunha). Arquivo Municipal de Lisboa / Arquivo Fotográfico.